Lênin, Stalin, Kruchev e Brejnev jamais disseram uma coisa dessas. Quebrando uma tradição de respeito quase religioso, fielmente guardado desde a criação do Estado soviético em 1917, o quinto ocupante supremo do Kremlin e atual secretário-geral do Partido Comunista da URSS, Yuri Andropov, ousou referir-se a Karl Marx como um “cidadão normal”.
Num longo ensaio para a revista Kommunist, Andropov admitiu na semana passada que Marx “era uma criatura de seu período histórico” e que “não poderia entender todas as circunstâncias com que se defrontaria a União Soviética”. A frase era uma resposta a incontáveis críticos – do Ocidente, logicamente – para os quais a sociedade de hoje na URSS não corresponde às previsões do filósofo alemão e criador da ideologia comunista. [A Kommunist era uma publicação oficial do Comitê Central do Partido Comunista da URSS e cujo papel era disseminar a ideologia e as diretrizes do partido].
Não se trata, exatamente, de uma novidade – afinal o primeiro erro de Marx em relação à então Rússia foi justamente imaginar que ela estava distante de uma revolução comunista. Esta, pelos seus cálculos, ocorreria primeiro nas potências industriais européias, como Alemanha e Inglaterra – que, mais de um século depois, teimam em continuar capitalistas.
Mas os líderes nacionais de regimes comunistas sempre preferiram esquecer os erros ou limitações do mais cultuado de seus totens. O artigo de Andropov contém outras ousadias. “O marxismo não é um dogma”, escreve ele, negando décadas de pregação panfletária do PCUS.
Uma agulhada foi dirigida por Andropov a seu antecessor, Leonid Brejnev, por dezoito anos responsável pela condução do país. “As relações econômicas e os métodos de administração estão atrasados”, escreveu ele. E deu um exemplo capaz de arrancar aplausos do economista liberal Milton Friedman, arquiinimigo do marxismo, ao dizer que na URSS “há uma excessiva igualdade de salários”.
Andropov afirma ainda que “uma sociedade adequada pode ser conseguida no futuro”, mas a URSS “está no começo desta longa caminhada”. Isso é bem menos que o paraíso comunista habitualmente prometido pelos propagandistas soviéticos.
Matéria publicada na revista Veja, edição de 2 de março de 1983, sob o título original de “Outras palavras”
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