Ainda com a mão na maçaneta da porta de sua sala de trabalho, em Roma, o juiz instrutor Ilario Martella aborreceu-se na semana passada. “Fico espantado como certas notícias acabam saindo nos jornais”, disse ele. Martella, de 47 anos, responsável pelo inquérito que apura o atentado cometido contra o papa João Paulo II pelo terrorista turco Mehmet Ali Agca (foto principal do post), em maio do ano passado, 1981, referia-se à notícia de que, além do papa, também o líder polonês Lech Walesa estivera sob a mira de Agca, por ordem dos serviços secretos da Bulgária. “Evidentemente”, fulminou Martella, por trás de suas grossas lentes de míope, “há alguém que não está cumprindo com o seu dever. Esse alguém pagará por isso.”
O “caso Walesa” chega às manchetes
A hipótese de que Agca tenha sido incumbido também de matar Walesa durante sua visita a Roma, em janeiro de 1981, fez parte de uma nova saraivada de fatos e suspeitas que, na semana passada, outra vez ligou várias atividades criminosas desenvolvidas em território italiano a uma possível “conexão búlgara”, por trás da qual estaria a KGB soviética, que controla o regime comunista da Bulgária e sua polícia secreta.
A última e talvez mais grave dessas pistas surgiu na sexta-feira, na primeira página do jornal Daily American – impresso em Roma em língua inglesa – com a notícia de que o presidente da Romênia, Nicolae Ceausescu, soubera de um outro plano búlgaro para assassinar João Paulo II – antes do atentado de Agca – e tentara deter o seu desenrolar através de meios diplomáticos. Embora o jornal não o revele, sabe-se que sua fonte de informação é pelo menos um diplomata romeno que participa dos entendimentos para a renegociação da dívida externa de seu país com bancos da Europa Ocidental.
Martella: “Alguém pagará por isso”
Outra informação importante foi atribuída pela imprensa italiana ao ex-líder sindical Luigi Scricciolo, preso em fevereiro deste 1982 por possíveis contatos com o grupo terrorista italiano Brigadas Vermelhas por meio de um primo seu, Loris. Scricciolo, ex-responsável pelo setor de relações internacionais da União Italiana do Trabalho (UIL, sigla em italiano) – uma federação sindical dominada por socialistas, republicanos e social-democratas – teria confessado colaborar com a espionagem da Bulgária desde 1976 e ter servido de ligação entre esta e as Brigadas – inclusive para fazer chegar ao conhecimento dos agentes búlgaros o conteúdo do interrogatório a que os terroristas italianos submeteram o general americano James Lee Dozier durante o seu seqüestro.
[Dozier era vice-chefe de estado-maior da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar ocidental) estacionado em Verona, Itália. Seu papel incluía atividades de planejamento e coordenação militar para a aliança ocidental].
Um emaranhado
A confissão de Scricciolo fornece mais elementos à velha suspeita de que o terrorismo italiano, embora surgido de forma autônoma, tenha sido pilotado por serviços secretos dos países comunistas da Europa, interessados em desestabilizar o regime na Itália. A descoberta de duas chaves em um “aparelho” das Brigadas Vermelhas, também na semana passada, veio reforçar essa tese.
As chaves seriam de um apartamento em Praga e pertenceriam ao terrorista Mario Moretti, cérebro do seqüestro e posterior assassinato do ex-primeiro-ministro Aldo Moro, ocorrido em maio deste 1982. Moretti, de acordo com o depoimento de um de seus companheiros, teria estado mais de uma vez em Sófia, a capital da Bulgária, junto com o “armeiro” das Brigadas, Maurizio Forli, ainda foragido.
Atualmente, no âmbito do inquérito em que se apura o assassinato de Moro, está em curso uma meticulosa averiguação a respeito de um misterioso búlgaro que, à época do seqüestro do ex-primeiro-ministro, alugou uma casa no litoral próximo de Roma. Quando foi encontrado o cadáver de Moro no porta-malas de um carro estacionado no centro de Roma, traços de areia que os peritos identificaram como sendo procedente daquele trecho da costa foram localizados em sua roupa.
Veio à tona, também, a informação de que Loris Scricciolo trabalhara em um bar desse mesmo litoral, o qual, segundo apurou o serviço secreto italiano, era freqüentado pelo cônsul búlgaro Antonon Petkov, posteriormente expulso da Itália sob acusação de espionagem.
Naturalmente, nesse emaranhado policialesco que ninguém ainda consegue desatar, foi a notícia de que o turco Agca também quisesse matar Walesa que mais comoveu a Itália na semana passada. Ela encontrou respaldo tênue no fato de que o terrorista turco se encontrava em Roma no dia 19 de janeiro de 1981, o último da permanência de Walesa na cidade. Nesse dia, sob nome falso, ele se registrou na mesma pensão Isa, pequena e mal iluminada hospedaria da Via Cicerone, a 10 minutos da Praça de São Pedro, na qual voltaria a se hospedar na época do atentado ao papa.
A coincidência, contudo, como observou o cauteloso juiz Martella, “não quer dizer nada” em si, ainda mais quando se sabe que a delegação do sindicato Solidariedade esteve com João Paulo II no Vaticano no dia 18 – antes, portanto, da chegada de Agca à vizinha pensão. Além disso, desde a prisão de Agca já fizeram parte de seu suposto elenco de alvos nomes ilustres como a presidente do Parlamento europeu, Simone Weil, a rainha Elizabeth II, o primeiro-ministro de Malta, Don Mintoff, e o presidente da Tunísia, Habib Burguiba.
Conseqüências
Para defender-se dessa e das outras acusações que pesam sobre funcionários seus, o governo da Bulgária montou a mais aparatosa operação de relações com a imprensa de que se tem notícia num país comunista. Convocou em Sófia uma entrevista coletiva à qual estiveram presentes os dois supostos envolvidos no atentado ao papa – Todor Aivasov, tesoureiro da Embaixada búlgara em Roma, e o major Jelio Vassilev, secretário do adido militar – além de Rossitza Antonova, mulher do subchefe do escritório romano da companhia Balkan Air, atualmente preso na Itália, e do turco Beckir Celenk, acusado por Agca de ter-lhe oferecido 3 milhões de marcos alemães para matar o papa.
Diante de mais de 200 jornalistas que se espremiam em torno da mesa forrada de feltro verde montada em um dos salões do Parc Hotel Mosca, de Sófia, todos afirmaram e garantiram jamais ter conhecido Mehmet Ali Agca.
Essa era, naturalmente, a versão esperada – e os acusados, o governo da Bulgária e seus aliados farão o possível para manter. Quanto aos italianos, continuam a agir com a cautela de quem está caminhando sobre ovos. “Encontramo-nos face a uma situação de extrema gravidade”, pondera o presidente do Comitê Interparlamentar de Segurança, deputado Erminio Pennacchini.
Com efeito, não é exagero falar em “extrema gravidade”. Se algum dia for comprovado definitivamente que o serviço secreto da Bulgária mandou matar o papa, e que funcionários búlgaros operam com membros das Brigadas Vermelhas, contrabandistas de armas e traficantes de droga, essa será a mais espetacular e espantosa operação de interferência de um país comunista em uma nação da Europa Ocidental desde o fim da II Guerra – e as conseqüências da descoberta deverão ser proporcionais à sua envergadura.
Por enquanto, as suspeitas já provocaram um violento abalo nas relações entre Itália e Bulgária. O embaixador italiano em Sófia, Carlo Rossi Arnaud, convocado de volta a Roma por seu governo no início da semana passada, não deverá retornar a seu posto a curto prazo. O recém-empossado primeiro-ministro italiano, senador democrata-cristão Amintore Fanfani, já declarou formalmente que vai “prolongar a estadia” de Arnaud em Roma.
Mas o terremoto provocado por uma eventual conexão búlgara não faria tremer somente o relacionamento bilateral entre as nações envolvidas na trama. Todos os demais membros da OTAN – a começar, naturalmente, pelos Estados Unidos – seriam levados a adotar alguma represália diante do caso. “Eu não quero nem imaginar o que pode acontecer se isso tudo for verdade”, ponderava um diplomata americano que serve em Roma.
Insípida e inodora
Para muitos, esse cenário subestima a capacidade de avaliação dos soviéticos. “Os russos são muito pragmáticos e cautelosos nestas atividades”, diz o americano Yonah Alexander, especialista em Terrorismo no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, de Washington. Ele acrescenta que, vista sob o prisma de “custo-benefício”, uma ação destas não seria atraente para Moscou – considerando-se o risco de descoberta e o prejuízo que isto representaria para suas relações com a Europa e o resto do Mundo. “Creio que, honestamente, ainda não temos acesso a informações suficientes para tirar conclusões”, diz Alexander.
Ao que tudo indica, os Estados Unidos, até o momento, sabem efetivamente pouco sobre o que há de verdade no envolvimento da Bulgária no atentado contra João Paulo II e outros crimes cometidos na Itália. Durante o contato que o alto escalão da Embaixada dos Estados Unidos em Roma manteve com o Secretário de Estado, George Shultz, durante sua rápida passagem pela Itália na semana passada, o chefe da diplomacia americana foi aconselhado a manter uma posição completamente “insípida e inodora” a respeito, e a dizer somente frases protocolares como “isso é um grande problema” ou “esperamos que ao final toda a verdade venha à luz”. Foi o que Shultz fez.
Matéria publicada na Revista Veja em 22 de dezembro de 1982 sob o título de “A trama da Bulgária”