24 setembro 1970
SANTIAGO – O govêrno do socialista Salvador Allende, logo depois de instalado no Chile, pretende mandar missões a vários países da América Latina, da Europa Ocidental e do bloco comunista, inclusive a Cuba de Fidel Castro, com o qual, como senador, o presidente eleito estabeleceu laços pessoais [foto principal deste post]. Esta será uma das primeiras iniciativas do govêrno esquerdista no plano internacional, segundo se pôde apurar junto a uma fonte de comando da Unidade Popular, a coligação de esquerda liderada por Allende. E já virá a denotar – se fôr concretizada – o que observadores em Santiago consideram uma falta de habilidade do nôvo govêrno, por excluir do roteiro os Estados Unidos.
Com efeito, os reduzidos círculos políticos do Chile que já conhecem esta decisão não compreenderam os motivos da discriminação, uma vez que o nôvo govêrno e seu chefe, Allende, um velho e experimentado político, não obterão nenhuma vantagem ampliando ou deixando de reduzir sua área de atrito com os Estados Unidos, especialmente na fase de consolidação do poder.
Èste seria um indício do tipo de política internacional que o nôvo govêrno deverá adotar. Mas há outros sinais, bastante mais completos, que constam do programa da coligação de esquerda UP, liderada por Allende, e que, como o restante, também são muito comentados no Brasil, embora pouco conhecidos. (Veja na reprodução abaixo como esta reportagem recebeu na redação do jornal em São Paulo um título que não tem relação com o que apurei no Chile. Em nenhum lugar, em nenhuma entrevista ou conversa, inclusive com o próprio Allende, ouvi algo sobre uma “luta” de Allende “contra” os EUA).
O programa da coligação esquerdista, repleto de palavras como “imperialismo”, “lutas de libertação”, “neocolonialismo” e outras do tipo, a que se pôde ter acesso, não esconde um tom francamente belicoso em relação a Washington. Tal como redigido, tem como meta básica identificável “afirmar a plena autonomia política e econômica do Chile”. Para tanto, prega a existência de relações com todos os países do mundo, sem consideração de sua posição ideológica ou política, tendo como base “o respeito à autodeterminação e aos interêsses do povo do Chile”.
Logo no início do govêrno, e talvez ainda este ano (Allende, que não obteve maioria absoluta do voto popular, caso seja confirmado pelo Congresso e tudo corra como êle espera, tomará posse dia 5 de novembro), o Chile deverá reatar ou estabelecer relações com países comunistas como a China, o Vietnã do Norte, a Coréia do Norte, a Alemanha Oriental e Cuba.
Apesar das repercussões internacionais que isso venha a ter, a opinião pública não deverá, aparentemente, ficar muito impressionada: ainda no sábado passado, dia do Exército chileno e uma das festas pátrias, viam-se centenas de bandeiras de Cuba e do Vietnã do Norte, misturadas às do Chile nas ruas de Santiago, em automóveis e até nas mãos de crianças. O Chile abriga uma agência do Instituto Chileno-Cubano de Cultura, vários jornais do país assinam o noticiário de agências cubanas, ou mantém correspondentes em Havana, inúmeros estudantes do Chile passam férias em Cuba, e é comum encontrar-se, mesmo em bancas de jornais, publicações originárias de Cuba ou da China.
A UP pretende estabelecer vínculos “de amizade e de solidariedade” com os povos independentes ou colonizados, “em especial com aqueles que desenvolvem suas lutas de libertação e independência”. Pretende ainda estabelecer um “forte sentido latino-americanista e anti-imperialista”, por meio de uma política internacional “de povos, antes que de chancelarias” – o que, sem dúvida, inauguraria um nôvo estilo por estas bandas. Resta vê-lo posto em prática.
A defesa intransigente de autodeterminação dos povos será considerada pelo nôvo govêrno como “condição básica” para a convivência internacional. Por isso, a política do govêrno será “vigilante e ativa” para defender o princípio da não-intervenção e para rechaçar tôda tentativa de discriminação, pressão, invasão ou bloqueio, da parte dos “países imperialistas”.
Serão reforçadas as relações, o intercambio e a amizade com os países socialistas – o que também não é nenhuma novidade.
Os planos do govêrno Allende não são bons para a Organização dos Estados Americanos (OEA). A êste respeito, seu programa prevê que a posição de defesa “ativa” da independência do Chile implica em “denunciar a atual OEA como um instrumento e agência do imperialismo norte-americano, e lutar contra tôda forma de panamericanismo implícito nessa organização”. O govêrno vai propor a criação de um organismo “realmente representativo dos países latino-americanos”.
O Chile provavelmente recorrerá, em futuro próximo, a outras fontes de suprimento de recursos militares que não os Estados Unidos, seus tradicionais e quase exclusivos fornecedores: Allende considera indispensável “rever, denunciar e desfazer conforme os casos, os tratados e os convênios que signifiquem compromissos, que limitem nossa soberania” e, concretamente, “os tratados de assistência recíproca, os pactos de ajuda mútua e outros pactos que o Chile subscreveu com os Estados Unidos”.
A ajuda estrangeira e os empréstimos condicionados por razões políticas, ou que impliquem a imposição de realizar inversões “em condições que vulnerem” a soberania do país “e que vão contra os interesses do povo” serão rejeitados e denunciados pelo govêrno esquerdista. A mesma posição de denúncia o govêrno pretende manter com relação “a todo tipo de imposição estrangeira com relação às matérias-primas latino-americanas”, tais como o cobre, no caso chileno, e ao livre comércio, “que se traduziram durante longo tempo na impossibilidade de estabelecer relações comerciais coletivas com todos os países do mundo”.
No capítulo da “Solidariedade Internacional”, o programa afirma que “as lutas que mantêm os povos pela sua libertação pela construção do socialismo receberão a solidariedade efetiva e militante do govêrno popular”. Êste é um ponto bastante incisivo da política internacional do nôvo govêrno e, ao que parece, vai trazer alguns problemas políticos ao Chile dentro do chamado sistema interamericano.
A UP acentua que tôda “forma de colonialismo ou neocolonialismo será combatida”, e será reconhecido “o direito à rebelião dos povos submetidos a êsses sistemas”, bem como “tôda forma de agressão econômica, política ou militar provocada pelas potências imperialistas”. A política internacional chilena, segundo se pretende, deve manter uma posição de “condenação à agressão norte-americana no Vietnã e de reconhecimento e solidariedade ativa à luta heróica do povo vietnamita”.
Ainda dentro do continente, o programa enfatiza que o Chile será solidário de forma efetiva “com a revolução cubana, vanguarda da revolução e da construção do socialismo no continente latino-americano”.
Também “a luta anti-imperialista dos povos do Oriente Médio contará com a solidariedade do govêrno popular, que apoiará a busca de uma solução pacífica [da relação entre Israel e os países árabes] tendo por base o interêsse dos povos árabe e judeu”, bem como “se condenará a todos os regimes reacionários que promovam ou pratiquem a segregação racial e o anti-semitismo”.
Embora na parte geral da “Solidariedade Internacional” o programa preveja alguns pontos relacionados com a América Latina, a UP tem uma visão específica sôbre o problema latino-americano. O govêrno Allende pretende “propugnar por uma política internacional de afirmação da personalidade latino-americana no conceito mundial”. A integração latino-americana que o Chile passará a defender deverá ser construída sobre a base de economias que “se tenham libertado das formas imperialistas de dependência e exploração”. Mas ressaltam os allendistas que será mantida uma ativa política de acordos bilaterais nos casos em que sejam de interêsse para o desenvolvimento do país.
Sôbre os problemas fronteiriços, o nôvo govêrno pretende lutar por soluções que “previnam as intrigas do imperialismo e dos reacionários, tendo presente o interêsse chileno e dos povos de países limítrofes”.
A política internacional chilena, sob o govêrno Allende, “deverá romper tôda forma de burocratismo ou esclerosamento”. O nôvo govêrno pretende “buscar os povos com o duplo fim de tomar de suas lutas lições para nossa construção socialista e de oferecer-lhes nossas próprias experiências, de maneira que na prática se construa a solidariedade interacional que propugnamos”.
De maneira que, pelo visto, os Estados Unidos que se preparem. O nôvo govêrno, mesmo antes de assumir, mostra estar firmemente disposto a não aceitar o “status quo” vigente nesta parte do mundo, ao que parece com o acôrdo da outra.
Matéria publicada no Jornal da Tarde, de São Paulo, em 24 de setembro de 1970