(Texto publicado pelo autor na edição de 7 de setembro de 2010 da revista VEJA)
Em seus 119 anos de vida, o Jornal do Brasil cobriu e, eventualmente, contestou ou combateu três revoluções, três ditaduras, seis golpes de Estado, duas juntas militares, seis constituições, 31 presidentes da República, duas guerras mundiais e dez papas.
Passou por seis donos, uma depredação das oficinas, um empastelamento e uma invasão militar, teve de cerrar suas portas duas vezes – uma delas por um ano e 45 dias -, mas continuou chegando às bancas. Só não resistiu à má gestão e, neste 1º de setembro de 2010, deixou definitivamente de circular.
A versão on-line do JB, título desde 2001 arrendado pelo empresário Nelson Tanure à família Nascimento Brito, continuará no ar. Mas sem a menor chance de reprisar o brilho e a densidade que o transformaram numa referência de qualidade e credibilidade na imprensa brasileira, especialmente durante a segunda metade do século XX, depois da reforma que viria a influenciar todos os grandes jornais do país. A elegância do design, as colunas de notas informativas curtas, o Caderno B – tratando de cultura, artes e espetáculos -, a Op-Ed Page, dupla página contendo os editoriais e artigos de opinião.
“O novo modelo teve muitos autores e paternidade discutida”, escreveu em 2003 o último de seus grandes diretores de redação, Marcos Sá Corrêa, logo depois da morte do diretor-presidente do JB, M.F. do Nascimento Brito. “Puxou ao pedigree literário do editor-chefe Odylo Costa e aos traços do escultor Amilcar de Castro. Mas uma coincidência não se discute. Ela começou assim que M.F. chegou dos Estados Unidos, depois de um curso na Universidade Columbia para editores. Voltou disposto a fazer um jornal diferente. Ou seja, igual aos americanos. Acabou dono do primeiro jornal tipicamente brasileiro.”
O JB invariavelmente contou com um riquíssimo elenco de colaboradores, do escritor Eça de Queiroz ao poeta Carlos Drummond de Andrade, do pensador Alceu Amoroso Lima ao barão do Rio Branco. Com Odylo Costa e a reforma, aportou na sede da Avenida Rio Branco uma seleção de jovens talentos.
No jornal já estava Reynaldo Jardim, jornalista e poeta, precursor da grande revolução ao criar em 1956 o Suplemento Dominical. Janio de Freitas e Carlos Lemos seriam responsáveis pela radical alteração de design, texto, conteúdo e fotos da seção de Esportes.
Pelo JB passaram profissionais que enriqueceriam concorrentes, revistas, emissoras de TV, sites e agências de publicidade. O JB viveu dois períodos especialmente gloriosos: da reforma de 1958 até o fim da gestão de Alberto Dines (1962-1973) e de 1985 a 1990, sob a batuta de Sá Corrêa, quando recuperou a credibilidade e a influência após um flerte com o malufismo.
Dines comandou a histórica edição que noticiou, em 14 de dezembro de 1968, a decretação, na véspera, do Ato Institucional Nº 5 e o mergulho nas trevas da ditadura. Mesmo sob truculenta censura, enviou aos leitores numerosas mensagens em código.
Uma chamada no alto da primeira página, à esquerda, por exemplo, trazia uma meteorologia metafórica: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável (…)”. Do lado direito, um quadrinho anunciava: “Ontem foi o Dia dos Cegos”.
Na página de Esportes, o título de uma reportagem sobre os rigores da concentração da Seleção Brasileira de Futebol informava que “Pelé reclama da ditadura”.
O jornal que certa vez se definiu como “católico, liberal-conservador, constitucional e defensor da iniciativa privada” sempre abrigou contradições deliciosas. Surgiu em 1891, dois anos após a Proclamação da República, como monarquista – nesse mesmo ano, porém, mostraria suficiente visão para defender a construção de um metrô no Rio. Teve à sua frente figuras venerandas como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, mas acabaria se popularizando como o “jornal das cozinheiras” devido ao colossal volume de classificados.
“Vivam as cozinheiras”, costumava brincar com Nascimento Brito, seu genro, a condessa Maurina Pereira Carneiro, proprietária do jornal a partir da morte do marido, Ernesto, em 1953. Os lucros proporcionados pelos classificados e por outras ramificações da empresa, incluindo emissoras de rádio, uma editora e a indústria gráfica, começariam a minguar com a nova sede na Avenida Brasil, desnecessária e caríssima, inaugurada em 1973.
Dívidas bancárias, vícios próprios de empresas familiares e as divisões da família Nascimento Brito quanto à profissionalização da gestão, somados ao poderio que a TV concedeu ao principal rival no Rio – as Organizações Globo -, foram minando o grande jornal.
Sua verdadeira morte ocorreu com a transferência de mais de um século de tradição liberal a alguém distante do ramo – Tanure, empresário especializado em comprar companhias quebradas, saneá-las e vendê-las com lucro. Ao longo da operação, o próprio Tanure perderia dinheiro. Muito mais, porém, perderam a imprensa brasileira e o país com o fim do JB.