O Supremo Tribunal Federal (STF) está cada vez mais no coração das grandes decisões nacionais — seus julgamentos mais importantes ganham transmissão direta ela TV, a própria Corte e seus 11 ministros são objeto de debate e de críticas ferozes nas redes sociais, alguns de seus magistrados são abordados e não raro ofendidos em locais públicos.
O Supremo tem estado no centro das atenções do país há vários anos, e frequentou com estardalhaço as manchetes da mídia com julgamentos explosivos como os do mensalão, da Lei da Ficha Limpa, da validade ou não dos processos que levaram o ex-presidente Lula à cadeia, e com decisões monocráticas que deram liberdade a figuras polêmicas ou determinaram ações ou omissões nos outros Poderes, principalmente no Legislativo.
Diante da importância do Supremo e do fato, raríssimo senão inédito no mundo, de ser cada vez mais familiar ao cidadão comum — em geral, porém, pouco informado sobre seus poderes e procedimentos — muita gente se pergunta se a atual forma de indicação de ministros do Supremo é a melhor: o presidente da República escolhe um nome, o Senado o analisa, vota e, aprovado pelo Senado, o ministro é empossado, ocupando o cargo até completar 75 anos de idade, morrer ou resolver, por alguma razão, se retirar antes disso.
Pode-se questionar essa forma de indicação, prevista na Constituição. Antes de mais nada, porém, é preciso dizer que, se houve ou há ministros que não estão à altura do cargo, como as duas mediocridades indicadas por Bolsonaro ou o primeiro indicado por Lula – seu advogado pessoal -, o problema não está apenas no presidente que indica, mas no Senado. O Senado nunca faz a lição de casa, não exerce seus deveres constitucionais, não questiona com a necessária profundidade os nomes propostos, agindo como um clube de compadres, e, sobretudo, não recusa ninguém. Em toda a história de 135 anos de República, só disse “não” a cinco nomes, todos em um único ano – no distante 1894. Entre os recusados, todos por razões estritamente políticas, esteve Cândido Barata Ribeiro, abolicionista e republicano inflamado, ex-prefeito do Rio de Janeiro, nomeado em 1893 pelo presidente Floriano Peixoto (1891-1894) e hoje nome da conhecida rua de Copacabana.
O “Marechal de Ferro” governou de forma autoritária, obtendo do Congresso a suspensão de seus próprios trabalhos durante a maior parte do mandato (1891-1894) e implantando o estado de sítio. No final de seu governo, já enfraquecido e com o Congresso ressuscitado, o Senado vingou-se, rejeitando cinco entre onze indicações de Floriano. No caso de Barata Ribeiro, médico de formação, mas com grande experiência na vida pública, supostamente por não ser detentor do “notório saber jurídico” exigido pela Constituição. Desde essa longínqua briga do Marechal de Ferro com o Congresso, porém, nunca mais nenhum ministro teve seu nome recusado pelo Senado, por mais medíocre que fosse seu currículo ou menos nobres as razões de sua indicação.
O Senado dos EUA, sim, cumpre seu papel
Foram os Estados Unidos quem inventaram a fórmula que o Brasil copiou, desde a primeira Constituição republicana, de 1891. Só que, diferentemente do que ocorre no Florão da América, as indicações do presidente ao Senado são não raro discutidas durante meses, em longas e severas sessões da Comissão de Justiça e, depois, do plenário do Senado. Ao longo da história, doze nomes já foram recusados pelos senadores, dois deles durante o governo do popularíssimo presidente Ronald Reagan (1981-1989) – o último em 1987, o jurista conservador Robert Bork. Sem contar os casos em que, diante das dificuldades à aprovação antevistas pelo presidente ou o próprio indicado, este desiste da empreitada, como ocorreu em 2005 com a ex-conselheira presidencial Harriet Miers, proposta pelo presidente George W. Bush. Ou casos de absurdos políticos como a decisão dos republicanos, oposição ao presidente Barack Obama, de bloquear durante quase um ano inteiro a indicação de um renomado magistrado, Merrick Garland, para a vaga surgida com a morte do juiz conservador Antonin Scalia, em fevereiro de 2016. A vaga acabou sendo preenchida pelo republicano Donald Trump. Garland é hoje secretário de Justiça do presidente Joe Biden.
A vaga que cabia a Obama só terminaria preenchida, por um juiz conservador, em fevereiro de 2017, indicado pelo presidente Donald Trump mal chegado à Casa Branca.
O Supremo terá uma vaga a ser preenchida pelo presidente Jair Bolsonaro a partir de 5 de julho, com a aposentadoria do ministro decano Marco Aurélio de Mello por ter atingido o limite de idade de 75 anos para permanecer no posto. Será o 170º brasileiro a integrar este exclusivíssimo clube em 132 anos de República e o segundo entre 11 ministros do Supremo que Bolsonaro terá nomeado em pouco mais da metade do mandato.
Lula indicou mais nomes do que Sarney, JK, Getúlio…
Com dez ministros indicados, Lula é o presidente recordista em emplacar ministros do Supremo em seus três mandatos (2003-2011 e 2023-2027)). Sua sucessora, Dilma Rousseff (2011-2016) num período mais curto designou cinco ministros. José Sarney (1985-1990) também chegou a cinco. Seguem-se Juscelino Kubitschek (1956-1960) e Fernando Collor (1990-1992), com quatro. Getúlio Vargas nomeou 21 em seus dezenove anos no poder, nas duas passagens pelo Palácio do Catete, no Rio – mas só dois como presidente eleito pelo povo (1951-1954). Não é brincadeira ser ministro do Supremo, conforme comentei em outros textos. Vale repetir os principais argumentos. O ministro é um poderoso ente do Estado brasileiro. Nenhum outro servidor público, eleito ou não, entre os milhões de União, Estados e municípios, é detentor de igual importância – exceto o presidente da República. Junto com seus outros 10 colegas, ele decide diretamente sobre a vida de centenas de milhares de brasileiros, e suas decisões afetam todos os 212 milhões. Os ministros julgam com freqüência causas envolvendo bilhões de reais. Têm função vitalícia até os 75 anos. E resolvem, em última instância e sem apelação, o que está certo ou errado e o que pode ou não ser feito – inclusive pelo Congresso, pelo presidente, pelos governadores, pelos prefeitos e pelos demais tribunais –, à luz da Constituição e das leis.
A atual forma de indicação é democrática?
Com toda essa importância, será que um ministro do Supremo deveria ser indicado pela forma atual, com livre escolha pelo presidente da República, obedecidas algumas poucas condições previstas na Constituição – ter mais de 35 e menos de 65 anos de idade, “notável saber jurídico e reputação ilibada”? Passando apenas pelo questionamento formal, amigável, superficialíssimo do Senado? Não falta no país quem questione o ritual adotado pela Constituição. Muitos não consideram suficientemente democrático o processo todo e defendem seu aprimoramento: juristas, integrantes do próprio Judiciário, historiadores, deputados e senadores, colunistas de opinião. Antes de chegar ao poder, políticos do PT, em várias oportunidades, questionaram a fórmula mal copiada dos EUA – mais uma, entre tantas – e pregaram algum tipo de mudança. Chegou-se a falar nisso durante a campanha de Lula em 2002, embora nenhuma proposta de modificação haja sido incluída no programa de governo do então candidato.
OUTRAS FORMAS DE OUTROS PAÍSES
Quem tem se destacado na discussão desse tema, em sucessivos artigos e estudos – e a quem mencionei em outros textos passados –, é o desembargador e professor em São Paulo Alfredo Attié Jr., membro da Associação Juízes para a Democracia. Em um de seus trabalhos, Attié Jr. mostrou diferentes formas de compor tribunais superiores – no caso, os Tribunais Constitucionais, em bom grau equivalentes ao STF – em vigor na Alemanha, na Itália e em Portugal como exemplos de como é possível, sim, ampliar a representatividade e a legitimidade política dos integrantes da cúpula do Judiciário. Ressalte-se que os três países têm regimes parlamentaristas de governo, e não presidencialista, como o nosso. Ainda assim, vale a pena ver como são inteligentes e envolvem diferentes Poderes as formas de montar os altos tribunais nesses países.
Como é na Alemanha – Na Alemanha, cabe aos 69 integrantes da Câmara Alta ou Senado, o Bundesrat (representantes dos 16 Estados alemães), escolher metade dos 16 ministros do Tribunal Constitucional. A outra metade compete aos 603 deputados da Câmara Baixa, o Bundestag. Seis desses 16 ministros devem necessariamente ser pinçados entre os membros dos tribunais superiores federais. Os ministros têm mandato de doze anos e não podem ser reconduzidos ao posto. A Constituição alemã teve o cuidado de situar o Tribunal na cidade de Karlsruge, a 670 quilômetros da capital, Berlim, como a mesmo que simbolicamente afastar a corte da influência que a política pode ter no dia-a-dia dos juízes.
Como é na Itália – O processo na Itália é mais complexo. Dos quinze ministros do Tribunal Constitucional, um terço é escolhido diretamente pelos integrantes dos tribunais superiores, outro terço é indicado pelo Parlamento e os demais cinco ministros pelo presidente da República, com a aprovação do primeiro-ministro, que em geral é o real autor da indicação, já que o presidente italiano tem funções quase exclusivamente protocolares. Há uma série de requisitos profissionais exigidos, e, tal como na Alemanha, os ministros têm mandato de doze anos, vedada a recondução sucessiva.
Como é em Portugal – Em Portugal, todos os 13 ministros da corte são escolhidos pela Assembléia da República – seis deles, no entanto, precisam obrigatoriamente provir dos tribunais superiores. Também lá não há a vitaliciedade existente no Brasil: os ministros atuam no tribunal por um máximo de nove anos, sem possibilidade de recondução.
NÃO FALTAM BONS EXEMPLOS
Não é, portanto, por falta de bons exemplos inspiradores que se deixará de alterar, um dia, a forma de indicação dos ministros do STF. Seria possível até uma adaptação à norma atual, que obrigasse o presidente, por exemplo, a fazer um determinado percentual de indicações obrigatoriamente entre membros dos tribunais superiores, incluindo os Tribunais de Justiça estaduais.
Claro que seria uma ofensa a juristas ilustres supor que a escolha do presidente determine suas decisões, que eles venham a compor uma espécie de “bancada governista” no tribunal. Seria uma ofensa, mas sabemos que ocorre. E ocorre nos próprios Estados Unidos, onde os três juízes nomeados por Trump, todos de ideologia próxima à do então presidente, transformou a Suprema Corte num tribunal ultraconservador, cujas decisões em casos que têm a ver com a “guerra cultural” empreendida por Trump já se sabem de antemão quais serão. O tribunal hoje tem 6 ministros ultraconservadores, e três considerados liberais. Qualquer questão envolvendo teses progressistas perde sempre por 6 a 3. Isso nunca ocorreu antes nos 235 anos de existência da corte. Não é por acaso que o presidente Biden, em final de mandato, prega mudanças no tribunal, começando por eliminar a vitaliciedade. Vai ser muito difícil que o Congresso aprove qualquer alteração até onde a vista alcança – enquanto perdurar a atual feroz bipolarização existente no Legislativo e, principalmente na sociedade americana. No Brasil, tudo considerado, há um crescente consenso de que a fórmula em vigor, já arcaica e carcomida, não mais atende aos interesses da sociedade e pode ser aperfeiçoada, contribuindo para melhorar a atuação, a independência e a imagem do Judiciário.